Nesta semana, a Justiça decidiu levar a júri popular o motorista de um
carro de luxo que, em setembro do ano passado, provocou uma série de
acidentes em São Paulo e matou uma pessoa. Segundo a perícia, Felipe
Arenzon saía de uma casa noturna embriagado e estava a mais de 120
quilômetros por hora num lugar onde a velocidade máxima é de 60
quilômetros por hora. A decisão de punir com mais rigor quem mata ao
volante é uma nova tendência entre os juízes brasileiros, como mostra a
reportagem especial de Sônia Bridi e Paulo Zero.
“A Izabella foi feliz durante os 11 anos de vida dela. Se existiu alguém feliz foi ela”, lembra Argélia Gauto, mãe de Izabella.
“A gente saía, e tinha aquelas máquinas de tirar fotografia. A última foi essa que eu peguei o cabelo dela e fiz como se fosse o bigode”, mostra Chico Caruso, pai de Izabella.
As imagens feitas por Argélia deveriam ser de uma breve despedida. Izabella, a filha dela com o cartunista Chico Caruso, ia passar o ano novo na praia com a família da amiguinha. Mônica, a motorista, com a babá no banco da frente. Izabella atrás, entre os filhos de Mônica. Eles nunca chegaram ao destino.
“Eu falei: 'Não é possível, a morte não combina com ela, a morte não combina com ela'. Mas era verdade”, diz Chico.
O acidente foi bem perto da Praia de Búzios, no litoral do Rio. O policial militar André Luiz Fernandez vinha dirigindo na direção contrária à de Mônica. Foi jogado para fora da estrada por uma camionete que forçou uma ultrapassagem.
“O ônibus jogou pra lá também, porque não tinha muita pista pra jogar, por causa do poste. E eu vim parar no mato. Fui atrás dele para poder fazer o que eu tinha que fazer, entendeu? Dar voz de prisão”, conta Fernandez.
Mas era impossível seguir a camionete a mais de 140 quilômetros por hora na estrada cheia de curvas. Ele só ouviu a batida.
“Como se tivesse botado uma bomba. Foi um barulho seco, seco”, lembra o policial.
Na camionete o motorista levava a filha pequena no banco da frente, sem cinto de segurança. Ele perdeu o controle na curva e bateu em cheio na Scenic dirigida por Mônica. Ela e Izabella morreram na hora. O motorista da camionete se feriu levemente. A filha dele teve traumatismo craniano, mas sobreviveu.
“Não me lembro de nada, graças a Deus”. Três meses em coma, e seis anos de vai e vem a hospitais. A babá Rita de Cássia Antônio ficou cega de um olho. Tem um implante no quadril. E ainda precisa de uma cirurgia para corrigir a fratura no pulso.
“Eu fazia faxina a semana toda. Cada dia numa casa, de subir, descer escada, limpar parede, lavar cozinha, hoje em dia não tenho mais condições de fazer isso”, lamenta a babá.
Rita passa roupa para fora para complementar a aposentadoria de um salário mínimo por invalidez.
“Quando minha prima Argélia perguntou: 'O que vai acontecer com ele?'. Eu disse: 'Vai pagar uma cesta básica ou um trabalho comunitário, só isso'”, conta a advogada Jussara Gauto.
“No momento que eu entendi tudo, fui buscar a Justiça. Porque eu não aceitava. Ninguém ia me dar cesta básica”, relata Argélia.
A prima advogada foi buscar a pena de prisão para o motorista. “Eu havia dito para a Argélia: 'É uma tese que ainda não foi usada'. Em 2006, isso aí era como um tiro na Lua”, conta a prima.
Historicamente no Brasil, a morte no trânsito é tratada como
homicídio culposo. É quando o acidente é provocado por descuido,
imperícia, imprudência, ou o motorista não previu o risco, mesmo
dirigindo embriagado ou em alta velocidade. A pena máxima é de quatro
anos e pode ser convertida em serviços comunitários. Na maioria dos
casos, o condenado escapa da cadeia doando cestas básicas.
“A Izabella foi feliz durante os 11 anos de vida dela. Se existiu alguém feliz foi ela”, lembra Argélia Gauto, mãe de Izabella.
“A gente saía, e tinha aquelas máquinas de tirar fotografia. A última foi essa que eu peguei o cabelo dela e fiz como se fosse o bigode”, mostra Chico Caruso, pai de Izabella.
As imagens feitas por Argélia deveriam ser de uma breve despedida. Izabella, a filha dela com o cartunista Chico Caruso, ia passar o ano novo na praia com a família da amiguinha. Mônica, a motorista, com a babá no banco da frente. Izabella atrás, entre os filhos de Mônica. Eles nunca chegaram ao destino.
“Eu falei: 'Não é possível, a morte não combina com ela, a morte não combina com ela'. Mas era verdade”, diz Chico.
O acidente foi bem perto da Praia de Búzios, no litoral do Rio. O policial militar André Luiz Fernandez vinha dirigindo na direção contrária à de Mônica. Foi jogado para fora da estrada por uma camionete que forçou uma ultrapassagem.
“O ônibus jogou pra lá também, porque não tinha muita pista pra jogar, por causa do poste. E eu vim parar no mato. Fui atrás dele para poder fazer o que eu tinha que fazer, entendeu? Dar voz de prisão”, conta Fernandez.
Mas era impossível seguir a camionete a mais de 140 quilômetros por hora na estrada cheia de curvas. Ele só ouviu a batida.
“Como se tivesse botado uma bomba. Foi um barulho seco, seco”, lembra o policial.
Na camionete o motorista levava a filha pequena no banco da frente, sem cinto de segurança. Ele perdeu o controle na curva e bateu em cheio na Scenic dirigida por Mônica. Ela e Izabella morreram na hora. O motorista da camionete se feriu levemente. A filha dele teve traumatismo craniano, mas sobreviveu.
“Não me lembro de nada, graças a Deus”. Três meses em coma, e seis anos de vai e vem a hospitais. A babá Rita de Cássia Antônio ficou cega de um olho. Tem um implante no quadril. E ainda precisa de uma cirurgia para corrigir a fratura no pulso.
“Eu fazia faxina a semana toda. Cada dia numa casa, de subir, descer escada, limpar parede, lavar cozinha, hoje em dia não tenho mais condições de fazer isso”, lamenta a babá.
Rita passa roupa para fora para complementar a aposentadoria de um salário mínimo por invalidez.
“Quando minha prima Argélia perguntou: 'O que vai acontecer com ele?'. Eu disse: 'Vai pagar uma cesta básica ou um trabalho comunitário, só isso'”, conta a advogada Jussara Gauto.
“No momento que eu entendi tudo, fui buscar a Justiça. Porque eu não aceitava. Ninguém ia me dar cesta básica”, relata Argélia.
A prima advogada foi buscar a pena de prisão para o motorista. “Eu havia dito para a Argélia: 'É uma tese que ainda não foi usada'. Em 2006, isso aí era como um tiro na Lua”, conta a prima.
Já no dolo eventual, ou homicídio doloso, a Justiça entende que o motorista assumiu o risco de matar ao andar em alta velocidade, embriagado ou participando de um racha, por exemplo. Nesse caso, o acusado vai para o banco dos réus e é o júri popular que determina se ele é culpado. A pena vai de seis a 20 anos de prisão. E foi essa a interpretação da Justiça no caso da morte de Izabella.
No mês passado, Juamir Dias Nogueira Junior foi condenado a oito anos de cadeia pelas mortes de Izabella e Mônica. Procurado pelo Fantástico, se recusou a comentar a sentença.
“No fundo, há uma luta entre o bem e o mal, e o que resultou disso? A aprovação do crime doloso para crime de trânsito”, conta Chico Caruso.
A luta é também no campo das ideias. Uma corrente jurídica considera que dolo não se aplica a crimes de trânsito.
“Em geral, os crimes de trânsito são culposos. No dolo, o agente afirma pra si mesmo: 'Aconteça o que acontecer, vou continuar dirigindo em excesso de velocidade'. E na culpa: 'Eu dirijo em excesso de velocidade porque sou um exímio motorista e posso evitar o acidente', explica o jurista Juarez Tavares.
“Se ele participa de um racha, de um pega, se ele dirige o veículo embriagado a meu ver, em tese, ele está assumindo. Ele pode não querer matar ninguém. Até presume-se que não queira, mas ele está assumindo um risco”, avalia o desembargador José Muiños Piñero.
Essa é a interpretação que está ganhando força.
A Justiça gaúcha quer botar no banco dos réus, por 17 tentativas de homicídio doloso, o motorista que em uma esquina de Porto Alegre se envolveu em uma disputa com ciclistas que faziam uma manifestação. E produziu cenas de violência que chocaram o país e correram o mundo.
A Justiça entendeu que ao acelerar pra cima dos ciclistas, o economista Ricardo José Neis assumiu o risco de matar ou machucar. Ele se defende dizendo que estava cercado e ameaçado pelos ciclistas e que, diante disso, teve que fugir.
Fantástico: O senhor se arrepende de ter acelerado?
Ricardo José Neis: É a mesma coisa que você perguntar se eu me arrependo de estar vivo, de ter preservado a vida do meu filho. Se eu quisesse eu teria machucado eles realmente, se fosse a minha intenção.
“Eu acho que nós tivemos muita sorte nisso e ele também. Porque eu não queria estar na consciência desse cara hoje”, diz o técnico de palco Marcos Rodrigues.
A maioria dos réus que a Justiça manda para o júri popular recorre para ser julgado por culpa, não por dolo. Os processos se arrastam durante anos.
A nova tendência da Justiça, de mandar para a cadeia quem mata no trânsito, é uma reação a números assustadores. Só em 2010, quase 43 mil pessoas foram mortas nas ruas e estradas do Brasil. Se continuar nesse ritmo, até 2015, vai ter mais gente morta por carros, ônibus, motos, e caminhões no país, do que a tiros, facadas, pancadas, ou seja, todas as outras formas de homicídio.
“O Brasil tem uma guerra nacional decorrente de acidentes de trânsito. Isso tem que ser de certa forma tolhido, diminuído ou erradicado”, observa o ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp.
O ministro Gilson Dipp foi o presidente da comissão de juristas que elaborou a proposta do novo Código Penal, que está sendo analisada no Senado.
Para facilitar a punição no trânsito, foi criado um novo tipo de culpa, a gravíssima ou temerária.
É para quando não for comprovado que o agente quis matar, nem assumiu o risco, mas agiu com temeridade. A pena passa para quatro a oito anos de prisão.
A proposta de lei enquadra como culpa gravíssima dirigir embriagado ou participar de racha. O racha seria punido com dois a quatro anos de prisão. E embriaguez, de um a três anos.
Assim, quem mata no trânsito poderia pegar penas maiores, e ir para a cadeia, sem passar pelo júri popular - o que ainda encontra resistência entre muitos juízes.
No Rio, o juiz mudou o processo contra Rafael Bussamra, que atropelou e matou Rafael Mascarenhas, o filho da atriz Cissa Guimarães. Em vez de júri popular, ele vai responder por homicídio culposo.
Segundo testemunhas, Bussamra e o amigo Gabriel de Souza Ribeiro entraram num túnel fechado para obras para fazer um racha. Rafael andava de skate com amigos na boca do túnel e foi arremessado a 60 metros de distância.
O juiz alegou que o atropelador não agiu com indiferença, porque ligou para a polícia e a ambulância.
“ Os pais, o pai e o irmão foram lá para corromper essa polícia que eles chamaram para ajudar?”, afirma Cissa Guimarães, mãe de Rafael.
Pouco depois do acidente, Rafael Bussamra, o irmão e o pai foram flagrados por câmeras de segurança corrompendo policiais militares para esconder as provas do crime.
Os policiais já foram condenados a cinco anos de prisão, em regime semi-aberto, por corrupção passiva. Mais do que a pena máxima a que Bussamra está sujeito por homicídio culposo.
Rafael Bussamra, o pai, o irmão, e o advogado deles não quiseram falar ao Fantástico.
Cissa recorreu: “Eu vou até o final, pela memória do meu filho. Mas acima de tudo para acabar com essa impunidade que me dá enjoo. Que me dói”.
Há 12 anos, o advogado Luiz Felizardo Barroso tenta mandar para a cadeia os homens que ele considera responsáveis pela morte do filho.
“Toda justiça que tarda é a negação da própria justiça. E a nossa, no Brasil, infelizmente, tarda muito”, diz Barroso.
No escritório, o neto, que tinha oito anos quando ficou órfão, ocupa a mesa do pai, Ricardo de Camargo Barroso.
Amanhecia na véspera de Natal no ano 2000. Ricardo ia surfar. À sua frente, em outro carro, um amigo surfista, que nunca esqueceu daquela manhã.
Tinha um carro tombado no meio da pista. Ele e Ricardo deixaram os carros no acostamento, com o pisca alerta ligado. Ricardo tentava tirar o motorista preso nas ferragens.
“Nisso, o Peugeot começou a pegar fogo. Quando eu estou abaixado pegando o extintor de incêndio, eu escuto um barulho de freada forte e uma batida. Tinha um carro que tinha batido, com a frente toda levantada. E 'cadê o Ricardo? Cadê o Ricardo?', aquela confusão, poeirada danada”.
Ricardo, outro voluntário que ajudava no socorro do primeiro acidente e a vítima, que até então estava apenas ferida, morreram na hora.
Na denúncia à Justiça, o Ministério Público diz que o carro que matou Ricardo e mais duas pessoas corria a mais de 110 quilômetros por hora, dentro da cidade, e participava de um pega.
Os dois acusados - André Garcia Neumayer, que dirigia o carro que bateu, e Juliano Bataglia Ferreira, que participava do pega - foram mandados a júri popular, mas recorreram até o Superior Tribunal de Justiça, que confirmou a decisão.
O advogado dos acusados ainda vai pedir embargo no Supremo Tribunal Federal.
“Não houve pega, em primeiro lugar. E segundo, nós vamos ter que considerar que esses garotos são suicidas, eles assumiram o risco de ceifar suas próprias vidas a partir do momento que eles batem no outro carro”, defende o advogado.
Se conseguirem impedir o júri popular, os dois acusados não serão julgados por nada. Depois de 12 anos nos corredores da Justiça, a acusação por homicídio culposo já está prescrita.
Araçatuba, interior de São Paulo. Dois casos, duas decisões distintas. O carro em alta velocidade, fazendo pega, avança o sinal, provoca o acidente e deixa com sequelas um universitário brilhante.
O motorista, filho de um fazendeiro, é indiciado por homicídio doloso, foge, e é capturado numa fazenda no Mato Grosso.
Mas a sensação de que a Justiça de Araçatuba seria mais rigorosa com os crimes do trânsito durou pouco. Menos de três meses depois, o promotor encarregado da acusação se envolveu em um acidente numa rodovia que dá acesso à cidade. Provocou a morte de três pessoas. Mas ele não vai a júri popular. Alessandro, Alessandra e o filho dela, Adriel, de sete anos, morreram na hora. Na camionete do promotor foram encontradas bebidas. Na delegacia, um médico atestou a embriaguez, mas ele se negou a colher material para exame.
“Se fosse eu, estaria preso. Como ele é promotor e tem dinheiro,está lá”, lamenta Alberto dos Santos, pai de Alessandro.
O Ministério Público transferiu o promotor Wagner Rossi para São Paulo e o denunciou por homicídio culposo. Cinco anos depois do acidente, o foro especial do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou o promotor a quatro anos de prisão, convertidos em serviços comunitários, suspensão da carteira de motorista por quatro anos e indenização de R$ 15 mil às famílias das vítimas. O advogado dele vai recorrer.
Fantástico: O senhor considera que essa pena foi dura?
Advogado: Claro que foi. Foi duríssima, foi duríssima. A palavra acidente existe porque acidentes acontecem.
Ao distinguir entre um acidente inevitável, e o comportamento arriscado e violento que mata no trânsito - a Justiça brasileira não só vai punir, mas prevenir tragédias.
“A vida da minha filha não tem preço. A gente não quer isso. A gente quer um mundo melhor, onde as pessoas possam sair se divertir, passear, brincar, e voltar pra casa”, pede Argélia.
Fonte: G1